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Os últimos projectos promovidos pela Sociedade de Reabilitação Urbana – Porto Vivo (SRU), bem como as mais recentes políticas urbanas a cargo da Câmara Municipal do Porto, têm evidenciado sinais preocupantes sobre o rumo que a reabilitação urbana está a seguir no centro histórico desta cidade. O mais recente caso, entre outros igualmente polémicos, é o projecto apresentado há poucos meses pela SRU, denominado Mobilidade e Sustentabilidade em Reabilitação: A Cidade Subterrânea.

O projecto em causa não fica atrás do seu faustoso nome e apresenta-se como uma espécie de revolução (ou involução) na gestão da mobilidade urbana do centro histórico. Reconhecendo a existência de uma “carência de estacionamento” naquela área da cidade, o projecto analisa a zona da Rua Mouzinho da Silveira e conclui que, face às tipologias licenciadas e às dificuldades de implementação de estacionamento tipo cave, seriam necessários, nesta rua, nada mais, nada menos, que 665 lugares de estacionamento. Isto é, segundo as contas da SRU, “em 20 metros de frente, com média de 3,5 pisos, seriam necessários 50 lugares”, o que, contas feitas, dará cerca de dois a três carros por fogo (contas bastante generosas, considerando que estamos em pleno centro histórico). Assim, a SRU propõe um túnel de estacionamento que irá ligar o Largo de São Domingos à zona sul da Rua das Taipas, com uma extensão total de 957 metros e que comportará em média, 2300 lugares. Estão previstos também, cerca de 400 metros em acessos, localizados em quatro pontos-chave como a Rua dos Clérigos ou o Largo dos Lóios. Tudo isto terá um custosimbólico de 38,8 milhões de euros, com cada lugar de estacionamento a ficar pela módica quantia de 16 870 euros. 

Posto isto, não valerá a pena tecer muito mais considerações sobre as características absurdas desta intervenção, já que conceber um túnel de estacionamento com cerca de um quilómetro de extensão em pleno centro histórico, para além de megalómano e pouco credível, é partir de um equívoco que tem conduzido, aliás, grande parte da acção da SRU. Propor um sistema suburbano, onde se estaciona e se entra directamente em casa, é simplesmente ignorar o sentido específico do centro histórico, é ignorar as razões que lhe dão a sua consistência e o seu valor, é ignorar o sentido elementar e as capacidades únicas da urbe: porque quem quer viver no centro histórico prefere não ter carro e aproveitar as possibilidades do espaço público, da marginal na Ribeira e do comércio na Rua de Santa Catarina.

O equívoco da SRU está em querer construir uma outra cidade. Não quer o Porto, não usa o material disponível, os meios existentes, a escala específica da cidade. Prefere a classe alta onde ela nunca esteve, com carros estacionados à porta (ou então mesmo dentro de casa, basta ver o caso de uma reabilitação proposta para a mesma Mouzinho da Silveira). Prefere as reabilitações quarteirão a quarteirão em shopping-center style, porque assim é que é rentável e porque assim é que é a lei do mercado. Mas em todo esse processo esquece-se de que, ao construir nessa grande escala de intervenção, está a ir contra a própria cidade que quer reabilitar. Porque o centro histórico é, de facto, microescala, é pequena intervenção, estrato sobre estrato, é história e património, é único e é singular. 
E essa é precisamente a marca da sua diferença: ser in-vulgar. Por isso, não é possível intervir importando simplesmente estratégias suburbanas, é preciso reconstruir a partir dessa singularidade, porque então arriscamo-nos a destruir aquilo que afinal se pretendia salvar, e então para isso, que se deixe tudo como está e se faça tudo mais lentamente. Porque falamos de muitos séculos de história, porque falamos de um potencial turístico e de vida urbana que se arrisca a desaparecer, e isso também acarreta custos. Reabilitar é, de facto, dispendioso e reabilitar bem é ainda mais. Mas o valor de uma verdadeira recuperação cresce no tempo, traz mais-valias, enquanto a má intervenção trará sempre custos acrescidos de manutenção, mas também de perda irreparável do carácter e identidade de uma cidade que, não esqueçamos, é ainda património mundial.

Mas mesmo que consideremos que tudo isto não passa de uma manobra de marketing, fica sempre a dúvida sobre a insistência num modelo de reabilitação largamente ultrapassado. Porque quem quer viver no centro histórico, como em todas as cidades da Europa, procura essa especificidade e sobretudo essa diferença face à suburbanidadehomogeneizada da periferia. Serão pessoas que, abdicando do automóvel, procuram um espaço activo e dinâmico de equipamentos públicos e actividades culturais, de contacto com outras pessoas, outras nacionalidades, outros estilos de vida. E isso será aquilo a que podemos chamar cosmopolitismo, ou simplesmente, cidadania. O que é, sem dúvida, muito diferente de sair à noite e ir à Baixa entre a meia-noite e as quatro da manhã, por uma questão de moda. 

De facto, ainda não somos cosmopolitas, ainda não se conseguiu construir uma cultura própria de cidadania, mas o Porto tem um espaço urbano com um potencial imenso, com uma singularidade única. E é isso que a reabilitação deve visar: a re-habilitação da cidade, mas também, a re-habilitação de uma cultura de cidadania, de espaço público e de vivência colectiva que os últimos anos de transformação urbana e de centros comerciais praticamente aniquilaram. Mas para isso é preciso discutir e ter estratégias de cidade, e não apenas uma gestão de mercearia, é preciso conhecer outros processos de reabilitação urbana, viajar e conhecer outras cidades. Porque é isso que advém de todos estes recentes projectos: um misto de provincianismo naïf ao serviço de uma lógica de mercado pouco esclarecida (vejam-se os recentes projectos das esplanadas do Café Piolho, da Praça do Moinho de Vento, do quarteirão de Carlos Alberto, da Praça de Lisboa).

É preciso diferenciar as áreas de intervenção, reter o que elas têm de característico e singular e adoptar estratégias para cada caso. 
É preciso compreender e apostar nos novos paradigmas da mobilidade que desvalorizam o automóvel. É preciso investir numa cultura de espaço público e insistir na capacidade criativa dos pequenos projectos e das pequenas medidas (o leasing automóvel, por exemplo, mas também, a limpeza, a segurança, os jardins públicos, isenções fiscais, apoio a projectos de integração, hortas urbanas, parques infantis – não há por exemplo um único em toda a zona de Miguel Bombarda). A cidade não é apenas um aglomerado de casas, mas uma rede solidária de vontades e de projectos colectivos – ela é, aliás, a história materializada desses projectos; o museu mais profícuo da nossa identidade e daquilo que outrora construímos, ambicionamos e desejamos. É este o potencial e a lição histórica das cidades e do Porto e, por isso, o nosso dever duplo de as sabermos construir mas também preservar.

Em suma, faltam programas, ideias e critérios para esta reabilitação (critérios económicos, claro, mas também, arquitectónicos, sociais, culturais). Falta discutir esses critérios e esses projectos. Mas falta também a correlação entre as entidades públicas e as instituições privadas, entre o poder político e as universidades. Só na concretização desse debate alargado poderemos construir uma plataforma de entendimento que possa orientar uma reabilitação realmente urbana e credível, pública e cosmopolita, capaz de evitar o perigo paradoxal mas iminente dessa suburbanização do centro. E para isso não basta ler a revistaTime Out, ou sair à noite, mas é preciso encontrar as estratégias que possam, antes de mais, reabilitar este debate e esta discussão, para que seja possível transformar a cidade do Porto num verdadeiro espaço qualificado e não num parque temático de diversões aberto da meia-noite às quatro da manhã.|

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Apesar de, aparentemente, a Porto Vivo já ter dado indicações de uma possível desistência do projecto Cidade Subterrânea, este é, ainda assim, ilustrativo do rumo que a reabilitação urbana na cidade está a tomar, e que os recém-construídos projectos para a Rua Mouzinho da Silveira nada vêm senão confirmar.

 

 1 V. Rui Loza. Mobilidade e sustentabilidade em reabilitação: a cidade subterrânea. In SEMINÁRIO GESTÃO URBANA DE UMA CIDADE PATRIMÓNIO MUNDIAL, Alfândega do Porto, 4 e 5 de Dezembro de 2009. [Em linha/online]. Porto : IHRU; SRU/Porto Vivo. [Consult. 31 Maio 2010]. Disponível em http://www.portovivosru.pt/pdfs/loza.pdf. Apresentação do projecto.

 


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